Fale com nosso time de advogados especialistas

Justiça do Espírito Santo autoriza que os presos por pensão alimentícia sejam soltos e cumpram pena em casa

 

Um Habeas Corpus Coletivo foi impetrado pela Defensoria Pública do Espírito Santo em virtude da pandemia do Covid-19 e a necessidade de adoção de todas as medidas que reduzam a curva de contaminação e garantam a saúde da população capixaba.

Ficou decidido que todos os devedores de alimento presos por pensão alimentícia do Estado do Espírito Santo devem cumprir suas penas em regime domiciliar, sendo as condições e tempo de duração a cargo dos juízes competentes. Confira a decisão judicial na íntegra:

 

Categoria: Decisões
Órgão: SEGUNDA CÂMARA CÍVEL
Disponibilizado em: 30-03-2020
Texto:

HABEAS CORPUS COLETIVO Nº 0008647-87.2020.8.08.0000

IMPETRANTE: DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

PACIENTES: PRESOS DEVEDORES DE ALIMENTOS

AUT. COATORA: JUIZES DE DIREITO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

RELATOR: DES. CONVOCADO RAIMUNDO SIQUEIRA RIBEIRO

DECISÃO/MANDADO/OFÍCIO

 

Trata-se de Habeas Corpus Coletivo, com pedido liminar, impetrado pela DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, em favor dos PRESOS DEVEDORES DE ALIMENTOS, contra ato coator imputado ao JUÍZES DE DIREITO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, em virtude da “pandemia decorrente da propagação do vírus Covid-19 e a necessidade de adoção de todas as medidas que reduzam a curva de contaminação e garantam a saúde da população capixaba”.

O Impetrante narra que, diante da situação ocasionada pela pandemia do Covid-19, “é objeto de preocupação a situação dos indivíduos que se encontram encarcerados, especialmente no que tange à garantia de integridade física e psíquica em face da possibilidade de disseminação da doença dentro das unidades prisionais”.

Aponta que “a despeito de o atual Código de Processo Civil ter estabelecido que a prisão do devedor de alimentos será cumprida em regime fechado, devendo o preso ficar separado dos presos comuns (art. 528, §4º, CPC) é fato declarado pelo próprio Supremo Tribunal Federal que o sistema carcerário brasileiro vive um estado de coisas inconstitucionais”.

 

Assinala que não há estrutura nos presídios que permita o isolamento de eventuais detentos infectados, de forma que certamente eventual contaminação poderá atingir todos os presos, considerando a conhecida superlotação carcerária.

Defende que “a única alternativa para evitar uma contaminação em massa nas unidades prisionais é garantir que o menor número de pessoas esteja exposto a aglomerações a condições propícias à propagação do vírus”.

 

Sustenta acerca do cabimento do writ coletivo, como forma de alcançar a máxima efetividade do remédio heroico, porquanto o “enfrentamento das violações a que são submetidos os pacientes devedores de alimentos no âmbito do sistema prisional, consubstanciado no massivo encarceramento e manutenção em espaços onde certamente haverá o caos pelo contágio do COVID-19, deve acontecer em âmbito coletivo e estrutural, pois, se nada for feito, várias vidas serão perdidas e várias pensões alimentícias deixarão de ser pagas futuramente”.

 

Assevera que a manutenção/decretação da prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado revela-se ilegal, quando em contraste com o determinado pela Lei nº 13.979/2020, a qual assegura às pessoas afetadas pelo COVID-19 o pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas.

Salienta que, nos termos do art. 6º da Recomendação nº 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça, é recomendável que os magistrados com competência cível considerem a colocação em prisão domiciliar dos devedores de alimento, como forma de evitar a propagação e o contágio pelo novo coronavírus.

Ressalta que, diante da situação excepcionalíssima em que estamos vivendo, revela-se possível o cumprimento da prisão civil em regime domiciliar, conforme inclusive fora reconhecido pelo C. STJ, bem como pelos Tribunais de Justiça dos Estados de Mato Grosso do Sul, de Minas Gerais e do Pará.

Diante de todo exposto, requer, em caráter liminar:

  1. I) Determinar, em caráter de urgência, a suspensão do cumprimento de mandados de prisão de devedores de alimentos provenientes de processos em trâmite no Estado do Espírito Santo, pelo prazo de 90 (noventa) dias, determinando-se, igualmente, a imediata expedição de alvará de soltura a todos os devedores de alimentos atualmente recolhidos no cárcere por inadimplemento de pensão alimentícia, oficiando as autoridades coatoras para seu imediato cumprimento.
  2. II) Subsidiariamente, determinar, em caráter de urgência, ante a crise humanitária e de saúde pública atualmente existente, o cumprimento da prisão civil dos devedores de alimento em recolhimento domiciliar, com fundamento, por analogia, no art. 117, II, da Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal), oficiando as autoridades coatoras para o seu imediato cumprimento.

III) Subsidiariamente, caso não acolhidos os pedidos principais, seja delimitado um prazo máximo de prisão civil para 01 mês.

Ao final, pugna pela concessão da ordem a fim de confirmar a decisão liminar que vier a ser deferida.

É o breve relatório.

 

Decido.

 

Como se sabe, o habeas corpus consiste numa garantia constitucional, capaz de ser manejado “sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”, conforme expresso no art. 5º, LXVIII, da Constituição da República.

Não obstante o constituinte originário não ter previsto a possibilidade de impetração de habeas corpus coletivo, ao contrário do que fora feito com o mandando de segurança, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal passou a admitir o manejo do remédio heroico em sua modalidade coletiva, quando verificada a existência de violações massivas e homogeneizadas a uma coletividade específica de pessoas, de forma que o conhecimento do writ coletivo confere uma maior eficácia ao instituto, evitando a impetração de diversas ações individuais, além de observar os postulados constitucionais da razoável duração do processo e da efetividade da prestação jurisdicional.

Tal entendimento fora aplicado pelo Pretório Excelso no julgamento do HC 143.641/SP, no qual fora reconhecido o direito das mães e gestantes presas a cumprirem a pena em regime domiciliar, confira-se (grifei):

HABEAS CORPUS COLETIVO. ADMISSIBILIDADE. DOUTRINA BRASILEIRA DO HABEAS CORPUS. MÁXIMA EFETIVIDADE DO WRIT. MÃES E GESTANTES PRESAS. RELAÇÕES SOCIAIS MASSIFICADAS E BUROCRATIZADAS. GRUPOS SOCIAIS VULNERÁVEIS. ACESSO À JUSTIÇA. FACILITAÇÃO. EMPREGO DE REMÉDIOS PROCESSUAIS ADEQUADOS. LEGITIMIDADE ATIVA. APLICAÇÃO ANALÓGICA DA LEI 13.300/2016. MULHERES GRÁVIDAS OU COM CRIANÇAS SOB SUA GUARDA. PRISÕES PREVENTIVAS CUMPRIDAS EM CONDIÇÕES DEGRADANTES. INADMISSIBILIDADE. PRIVAÇÃO DE CUIDADOS MÉDICOS PRÉ-NATAL E PÓS-PARTO. FALTA DE BERÇARIOS E CRECHES. ADPF 347 MC/DF. SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO. ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL. CULTURA DO ENCARCERAMENTO. NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO. DETENÇÕES CAUTELARES DECRETADAS DE FORMA ABUSIVA E IRRAZOÁVEL. INCAPACIDADE DO ESTADO DE ASSEGURAR DIREITOS FUNDAMENTAIS ÀS ENCARCERADAS. OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO E DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. REGRAS DE BANGKOK. ESTATUTO DA PRIMEIRA INFÂNCIA. APLICAÇÃO À ESPÉCIE. ORDEM CONCEDIDA. EXTENSÃO DE OFÍCIO. I – Existência de relações sociais massificadas e burocratizadas, cujos problemas estão a exigir soluções a partir de remédios processuais coletivos, especialmente para coibir ou prevenir lesões a direitos de grupos vulneráveis. II – Conhecimento do writ coletivo homenageia nossa tradição jurídica de conferir a maior amplitude possível ao remédio heroico, conhecida como doutrina brasileira do habeas corpus. III – Entendimento que se amolda ao disposto no art. 654, § 2º, do Código de Processo Penal – CPP, o qual outorga aos juízes e tribunais competência para expedir, de ofício, ordem de habeas corpus, quando no curso de processo, verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal. IV – Compreensão que se harmoniza também com o previsto no art. 580 do CPP, que faculta a extensão da ordem a todos que se encontram na mesma situação processual. V – Tramitação de mais de 100 milhões de processos no Poder Judiciário, a cargo de pouco mais de 16 mil juízes, a qual exige que o STF prestigie remédios processuais de natureza coletiva para emprestar a máxima eficácia ao mandamento constitucional da razoável duração do processo e ao princípio universal da efetividade da prestação jurisdicional VI – A legitimidade ativa do habeas corpus coletivo, a princípio, deve ser reservada àqueles listados no art. 12 da Lei 13.300/2016, por analogia ao que dispõe a legislação referente ao mandado de injunção coletivo. VII – Comprovação nos autos de existência de situação estrutural em que mulheres grávidas e mães de crianças (entendido o vocábulo aqui em seu sentido legal, como a pessoa de até doze anos de idade incompletos, nos termos do art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA) estão, de fato, cumprindo prisão preventiva em situação degradante, privadas de cuidados médicos pré-natais e pós-parto, inexistindo, outrossim berçários e creches para seus filhos (…) (HC 143641, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 20/02/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-215 DIVULG 08-10-2018 PUBLIC 09-10-2018)

Diante de tais considerações, vislumbra-se a possibilidade de impetração do writ coletivo no presente caso, considerando o risco em potencial que os presos por dívida alimentícia estão submetidos no sistema carcerário estadual, decorrente da pandemia ocasionada pela Covid-19.

Nessa toada, em fevereiro deste ano, fora promulgada a Lei nº 13.979/20, a qual prevê medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do novo coronavírus, cujas medidas objetivam a proteção da coletividade, conforme previsto no art. 1º, §1º, do citado diploma legal.

Outrossim, em 11/03/2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS), definiu a disseminação da Covid-19 como pandemia, porquanto a doença já se espalhou por mais de 100 (cem) países, afetando mais de 120 mil pessoas e, até então, com aproximadamente 4.000 (quatro mil) mortes registradas, sendo que somente no Estado do Espírito Santo, até a data de hoje (27/03/2020) há 48 (quarenta e oito) casos confirmados e 1.039 (mil e trinta e nove) em investigação[1].

O Congresso Nacional, por sua vez, em 20/03/2020, reconheceu o estado de calamidade pública em decorrência do novo coronavírus, de forma que o Governo Federal está dispensado do atingimento dos resultados fiscais previstos na lei orçamentária.

Em decorrência desse cenário, o Conselho Nacional de Justiça, em 17/03/2020, editou a Recomendação nº 62, cujo art. 6º, contêm a seguinte redação, in litteris:

 

Art. 6º Recomendar aos magistrados com competência cível que considerem a colocação em prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus.

 

Com fulcro em tal resolução, o Exmo. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino do C. Superior Tribunal de Justiça, na quarta-feira (25/03/2020) proferiu decisão, no bojo do HC 568.021/CE, determinando a colocação de todos os presos por dívida de alimentos no Estado do Ceará em prisão domiciliar.

Ocorre que na data de hoje (27/03/2020), Sua Excelência proferiu nova decisão estendendo a referida determinação para todos os presos por dívida alimentícia no país[2], de forma que o pedido subsidiário da Impetrante resta abarcado por tal decisão.

Ressalta-se que o referido Ministro determinou ainda que as condições para o cumprimento da prisão domiciliar, bem como o tempo de sua duração, ficarão a cargo dos juízes estaduais.

Por fim, quanto ao pleito de suspensão do cumprimento dos mandados de prisão dos devedores de alimento pelo período de 90 (noventa), entendo que tal pedido acaba por prestigiar eventual inadimplência por parte dos devedores de alimentos em detrimento do direito do alimentado.

Tanto é assim, que a própria Constituição Federal, como o Pacto de São José da Costa Rica, excepciona a vedação à prisão civil somente na hipótese do devedor de alimentos, haja vista o caráter de subsistência que tal verba possui para o alimentado.

Ademais, o cumprimento da prisão civil em regime domiciliar, vai ao encontro das determinações do Ministério da Saúde acerca da necessidade de isolamento social, garante o respeito à saúde e integridade do devedor de alimentos e, ao mesmo tempo, mantém, ainda que não seja no mesmo nível de gravidade, o caráter coercitivo da medida, a fim de que o devedor adimpla com a verba alimentícia.

Isso posto, DEFIRO, EM PARTE, o pedido liminar, de forma a determinar que o cumprimento da prisão civil dos devedores de alimento se dê em regime domiciliar, nos termos da decisão proferida pelo E. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, cujas condições e tempo de duração ficarão a cargo dos juízes competentes.

DÊ-SE CIÊNCIA AO IMPETRANTE.

ENCAMINHEM-SE os autos à douta Procuradoria-Geral de Justiça.

DILIGENCIE-SE.

Vitória (ES), 27 de março de 2020.

RAIMUNDO SIQUEIRA RIBEIRO

Desembargador Convocado

RELATOR

Fale agora com um especialista

Estamos prontos para ajudar você. Conte-nos o seu problema e encontraremos as soluções mais adequadas para o seu caso.